Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar nesta semana o julgamento de ação de inconstitucionalidade de lei do Ceará que proíbe pulverização aérea de defensivos no estado. A ação é da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que alega violação à livre iniciativa e aos objetivos da política agrícola. No STF, o julgamento, que já conta com dois votos favoráveis à constitucionalidade da Lei Estadual nº 16.820/19, deve ser concluído entre 19 e 26 de maio.
Devido à retomada do julgamento, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, realizou na última segunda-feira (15) audiência pública para debater os efeitos da pulverização aérea de agrotóxicos. O requerimento para realizar o debate foi feito pelo presidente da comissão, senador Paulo Paim (PT). O encontro contou com a participação de cientistas, pesquisadores, lideranças comunitárias e representantes do Ministério Público.
“Não é um julgamento sobre uma lei do Ceará, é um julgamento sobre o Brasil”, afirmou o deputado estadual Renato Roseno (Psol), autor da lei cearense. Ele e outros participantes da audiência defenderam que os estados têm competência para legislar sobre a matéria, tendo em vista a Lei nº 7.802/89, conhecida como Lei dos Agrotóxicos. Também foi levantado o problema da deriva, que corresponde ao volume da substância pulverizada que não atinge o alvo pretendido.
Luiz Claudio Meirelles, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), defendeu a manutenção da lei estadual nº 16.820/19. De acordo com nota técnica emitida pela instituição, a pulverização aérea foi proibida na União Europeia justamente devido ao seu potencial de “prejudicar significativamente a saúde humana e o ambiente, nomeadamente devido ao arrastamento da pulverização”. Meirelles lembrou ainda o posicionamento do Instituto Nacional do Câncer (Inca) contra as práticas de uso de agrotóxicos no Brasil, ressaltando seus riscos à saúde.
Impactos na saúde
Além de câncer, problemas respiratórios, deformação fetal, puberdade precoce, doenças neurológicas e suicídio estão entre as consequências da intoxicação por agrotóxicos citadas durante a audiência. Maria Juliana Moura Corrêa, diretora do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador, entregou à comissão uma nota técnica. Nela, o Ministério da Saúde recomenda que as políticas dos diversos setores estejam alinhadas à prevenção de riscos à saúde da população. “Estudos constataram que a deriva decorrente da aplicação aérea de agrotóxicos já alcançou uma distância de 32 km da área alvo. Dessa forma, ao atingir o meio ambiente, pode também contaminar mananciais de abastecimento de água para consumo humano, assim como lavouras e rebanhos vizinhos”, destaca o texto.
Outra preocupação dos participantes foi o avanço na tramitação do Projeto de Lei nº 1.459/2022, apelidado de Pacote do Veneno, que pode facilitar a liberação e a circulação de defensivos agrícolas. Segundo Juliana Santorum, representante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela vida, 720 mil toneladas de ingredientes ativos de agrotóxicos foram comercializadas no Brasil em 2021 e esse número pode aumentar. “Não existe possibilidade de usar o agrotóxico de forma segura, isso é um mito”, afirmou Leomar Daroncho, procurador do Trabalho e membro do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos do Ministério Público do Trabalho. Os participantes também disseram que o país não conta com uma rede de laboratórios capaz de monitorar a totalidade das substâncias autorizadas. Portanto, não seria possível medir a exposição das pessoas a essas moléculas.
Impactos na economia
Pedro Luiz Gonçalves Serafim da Silva, subprocurador-geral do Trabalho, afirmou que a lei cearense que proíbe a pulverização aérea é um exemplo para o Brasil. Para ele, os agrotóxicos são um problema não apenas do campo e podem impactar a relação do país com parceiros internacionais. Silva destacou a assimetria entre o Hemisfério Sul e o Hemisfério Norte no que diz respeito ao tema, podendo levar o Brasil a sofrer futuros embargos. Para exemplificar, ele citou a pesquisa de Larissa Mies Bombardi, da Universidade de São Paulo. O levantamento aponta que a legislação brasileira permite 5 mil vezes mais resíduo de glifosato na água potável que a União Europeia: enquanto aqui são tolerados 500 µg/litro, os países da UE limitam esse resíduo a 0,1µg/litro. O glifosato é o agrotóxico mais vendido no Brasil e testes de laboratório com essa substância levaram ratos ao desenvolvimento de tumores, à morte precoce, além de outros efeitos.
O diretor-executivo do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sintag), Gabriel Colle, defendeu o uso da tecnologia aérea na agricultura, mas disse que é preciso apurar responsabilidades.
Segundo ele, o setor é regulado, envolve cerca de 200 empresas e emprega aproximadamente 5 mil pessoas. Colle sustenta que a aviação é responsável por menos de 10% da aplicação de agrotóxicos e que os casos de deriva que atingem comunidades e outras áreas vulneráveis são exceções.
Mais atingidos
Para Adelar Cupsinski, representante da Fian Brasil, trabalhadores rurais, assentados, quilombolas e indígenas seriam os grupos mais afetados pela pulverização aérea de agrotóxicos. “Onde há conflito pela posse da terra, muitas vezes se utilizam os agrotóxicos contra essas comunidades. O [povo] Guarani Kaiowá é um exemplo”, afirmou. Já o procurador do Ministério Público Federal, Marco Antônio Delfino de Almeida, argumentou que o uso indiscriminado de agrotóxicos evidencia o racismo ambiental, isto é, o efeito desproporcional de impactos ambientais sobre populações mais frágeis.
O produtor agroecológico José Carlos, vítima de pulverização aérea em Nova Santa Rita (RS) entre 2020 e 2021, participou remotamente da audiência. Ele relatou as dificuldades enfrentadas após a deriva do veneno que atingiu casas, aquíferos, pastagens, lavouras, pomares e vegetação nativa. De acordo com ele, os pequenos agricultores que tiveram suas terras contaminadas não puderam vender seus produtos durante dois meses, comprometendo a subsistência das famílias.
Erileide Domingues, professora e líder da comunidade Guyraroká, no Mato Grosso do Sul, se referiu à aplicação aérea como “pulverização de ódio”. Domingues disse que a produção de mandioca, de arroz e de outros alimentos foi comprometida após a aldeia sofrer pulverização irregular de agrotóxicos em 2018, fazendo com que a comunidade se tornasse mais dependente de assistência governamental. “Não tem como dizer que veneno dá vida”, afirmou.
Enquanto aguardam conclusão do julgamento pelo STF, participantes celebraram o voto da ministra Cármen Lúcia, relatora da ação. Para ela, os estados não contrariam a Constituição quando editam “normas mais protetivas à saúde e ao meio ambiente quanto à utilização de agrotóxicos”. O voto foi seguido pelo ministro Edson Facchin. O terceiro a votar será Gilmar Mendes.