Um fragmento de DNA originário de um parente selvagem do trigo, denominado elemento de translocação 2NS/2AS, pode ser responsável pelo maior avanço para combater a brusone no cereal. Cientistas da Embrapa Trigo (RS) e do Centro Internacional de Melhoramento de Milho e Trigo (CIMMYT) conseguiram resultados promissores com a técnica. “Nas plantas com 2NS/2AS, a severidade da brusone se mostra até 50% menor em comparação com aquelas que não contam com a translocação”, conta o pesquisador Pawan Singh, chefe do Departamento de Fitopatologia em Trigo do CIMMYT.
De acordo com informações da Embrapa, a chamada translocação 2NS/2AS, é um fragmento de um cromossomo retirado do Aegilops ventricosa espécie selvagem parente da planta cultivada. A primeira cultivar desenvolvida contendo 2NS foi a VPM1, na França, no fim da década de 1960. Depois disso, essa cultivar foi cruzada com outras e a translocação 2NS/2AS ganhou o mundo, principalmente por meio dos cruzamentos realizados no CIMMYT. Como base de pesquisas, a instituição internacional conta com quatro viveiros de brusone na Bolívia e em Bangladesh, onde são avaliadas mais de 15 mil linhagens de trigo por ano para verificar fontes de resistência genética à doença.
Os pesquisadores consideram o 2NS/2AS o início da busca por marcadores genéticos relacionados à resistência à brusone. Esse trecho, associado a outros que ainda serão identificados, poderá ser a chave para uma cultivar resistente à doença, de acordo com os cientistas. Trata-se de um longo trabalho. Como comparação, para o arroz, cultura na qual a brusone surgiu, já foram identificados mais de 100 genes de resistência à doença. No entanto, no trigo, foram detectados apenas nove genes de resistência até agora.
A pesquisa
A seleção para resistência com 2NS/2AS conta com duas linhas de pesquisa que caminham de forma simultânea: uso de marcadores moleculares e fenotipagem. Sobretudo, o uso de marcador molecular visa aprimorar a seleção do fragmento de DNA que será translocado para a planta. Já a fenotipagem consiste na observação das plantas com 2NS/2AS que foram inoculadas com o fungo da brusone, ou mesmo ensaios a campo, em que são avaliadas as linhagens com melhor resposta na defesa à doença.
Conforme a pesquisadora da Embrapa Trigo Gisele Torres, a presença de 2NS/2AS na planta não é garantia de resistência à brusone. “Precisamos verificar a presença do 2NS/2AS com o marcador molecular e depois avaliar a reação da planta ao fungo. São técnicas complementares na busca pelo melhor resultado”, pondera.
No Brasil, o CIMMYT conta com o apoio de diversas empresas parceiras para avaliar o desempenho das linhagens quanto à brusone. Uma delas é a OR Melhoramento de Sementes, na qual as pesquisas com a translocação 2NS/2AS começaram em 2002, visando à introdução de genes de resistência à ferrugem da folha, ferrugem linear e ferrugem do colmo do trigo, ligados à translocação e que agregam resistência a uma ampla gama de raças do fungo, sendo utilizados em combinações com outros genes de resistência durável.
Segundo a pesquisadora da OR Camila Turra, os cruzamentos com 2NS/2AS expressam defesa nas plantas para brusone na espiga. Porém, a seleção no campo em áreas experimentais com irrigação e pressão da doença é fundamental, buscando aliar a herança genética com a expressão fenotípica. “Hoje a seleção para 2NS/2AS está em 100% do programa de melhoramento genético, buscando o desenvolvimento de cultivares com ampla adaptabilidade de cultivo, ou seja, cultivares que podem ser semeadas nas mais diversas regiões tritícolas onde quer que uma epidemia de brusone possa ocorrer”, conta Camila.
Na Biotrigo Genética, após a divulgação do efeito do segmento 2NS/2AS para a brusone, os pesquisadores buscaram identificar as linhagens com este segmento direcionando o uso da tecnologia nos cruzamentos e aumentando sua frequência no programa de melhoramento de trigo. “Não tenho dúvidas de que o 2NS/2AS é um marco na solução do problema da brusone, mas ainda precisamos evoluir em pesquisas para identificar outros genes de resistência”, comenta o pesquisador Paulo Kuhnem.
“Enquanto a pesquisa evolui em busca de maiores níveis de resistência, aspectos relacionados ao manejo químico complementar, como a tecnologia de aplicação de fungicidas, também precisam evoluir”, explica Kuhnem, destacando que a brusone infecta a ráquis (eixo principal da espiga), onde os fungicidas ainda não conseguem chegar satisfatoriamente para fazer a proteção de forma eficiente.
Em 2013, a Embrapa Trigo trouxe 1.581 linhagens do CIMMYT para avaliar a resistência à brusone a campo, com posterior utilização de marcadores moleculares para confirmar a presença de 2NS/2AS e experimentos em casas de vegetação com as linhagens pré-selecionadas. “Na seleção final, apenas oito linhagens com 2NS/2AS mostraram boa resistência à brusone e tiveram desempenho agronômico satisfatório nas nossas condições de campo no Cerrado brasileiro. Até o momento, selecionamos uma linhagem candidata a chegar ao mercado como cultivar, que além de resistência à brusone também apresentou excelente qualidade de farinha para a panificação”, conta o pesquisador da Embrapa Vanoli Fronza.
Em 2021, o pesquisador da Embrapa Cerrados (DF) Angelo Sussel avaliou outras 12 linhagens do CIMMYT com 2NS/2AS e verificou a incidência de, no máximo, 20% de brusone em trigo de sequeiro, sem nenhuma aplicação de fungicidas. Porém, ele lembra que o desafio para as últimas duas safras de trigo tem sido a falta de água, ocasionando perdas ainda maiores do que os potenciais danos causados pela brusone.: “Práticas de manejo, como ajustes na época de semeadura, genética mais tolerante e uso eficiente de fungicidas, têm assegurado proteção contra a brusone acima de 80% nas lavouras. Mas, assim como o fungo da brusone, o trigo precisa de água para sobreviver”, argumenta Sussel.
Em busca da resistência durável do trigo
Apesar de a translocação 2NS/2AS representar um marco para as pesquisas no combate à brusone no mundo, é preciso cautela para incluir a tecnologia nos programas de melhoramento, com possíveis quebras de resistência em cultivares já relatadas pela comunidade científica. “Não podemos ficar dependentes apenas da 2NS/2AS para controlar a brusone no trigo. A natureza do fungo é de adaptação. Não há garantias de que, no futuro, a resistência conferida pela sequência 2NS/2AS não possa ser rompida e isso gerar graves problemas até para a segurança alimentar do País, caso todas as cultivares disponibilizadas para os produtores tenham sido desenvolvidas a partir dessa única alternativa como fonte de resistência à brusone”, explica o pesquisador da Embrapa João Leodato Maciel.
Maciel destaca, que os principais estudos relacionados à sequência 2NS/2AS têm indicado que a resistência está associada somente à brusone na espiga de trigo, necessitando de mais estudos sobre o efeito da 2NS/2AS quanto à resistência em casos de incidência de brusone nas folhas.
Genética do trigo
De acordo com Singh, já foram identificadas outras possíveis fontes de resistência genética, mas o processo de seleção exige tempo e investimento. “Estamos trabalhando com as mais modernas técnicas de biologia molecular para ajudar no melhoramento genético do trigo, visando alcançar a grande diversidade de regiões produtoras de trigo no mundo e garantir a segurança alimentar da população”, diz Singh.
No mundo, de acordo com Kuhnem, muitos trabalhos de pesquisa têm buscado espécies parentais do trigo visando identificar novas fontes de resistência à brusone, mas, até o momento, nenhuma apresentou o efeito alcançado com a 2NS/2AS.
“A tecnologia 2NS/2AS é hoje o que temos de melhor para conviver com a brusone. Aliando a translocação com o controle químico e a época de semeadura mais adequada para cada cultivar, conseguimos um avanço enorme na triticultura tropical. O uso de novas tecnologias tem permitido o aumento de área em Goiás e em Minas Gerais e agora vamos poder expandir também para outros estados. E, quando conseguirmos colocar juntos na mesma cultivar a 2NS/2AS com outras fontes de resistência, vamos dar mais um passo grande na convivência com a brusone do trigo”, conclui Fronza.
Epidemias podem agravar a fome em países pobres
Conforme informações divulgadas pelo CIMMYT, uma epidemia de brusone afetou 3 milhões de hectares de trigo na América do Sul, na década de 1990. Em 1996, o primeiro surto de brusone na Bolívia resultou em quase 80% de perdas na produção. No ano seguinte, a doença novamente devastou as lavouras, causando 100% de perda de produtividade, o que foi responsável pela queda acentuada na área de trigo nos anos subsequentes na Bolívia. No Paraguai, onde ocorreu a primeira epidemia em 2002, foram registradas perdas de produção de mais de 70%.
No Brasil, ocorreram perdas por brusone em trigo nos anos de 2009 e 2012, quando danos acima de 40% comprometeram lavouras na fase de espigamento do trigo no Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Casos isolados de ocorrência de brusone no Rio Grande do Sul têm sido detectados, mas nunca foram registradas epidemias da doença.
Em 2019, a brusone causou prejuízos em Minas Gerais, Goiás e Distrito Federal com lavouras que tiveram perdas de até 100%, mas o que chamou a atenção foi a infecção do fungo mais cedo. As condições climáticas no início do ciclo da cultura propiciaram a incidência de brusone ainda no perfilhamento das plantas, acendendo o alerta para, com condições ambientais favoráveis, antecipar o controle da doença ainda nas folhas e não apenas na espiga, como orientava a pesquisa até então.
“Mesmo sem epidemias em 2022, as oscilações de temperatura permitiram registrar lesões de brusone nas folhas em, praticamente, todas as regiões tritícolas do País. No Sul, as lesões de brusone costumam ser confundidas com sintomas de mancha marrom (Bipolaris sorokiniana), mas o controle de manchas foliares acaba mascarando possíveis danos por brusone”, conta a pesquisadora da OR Melhoramento de Sementes, Camila Turra.
Prejuízo
A chegada da brusone do trigo na Ásia surpreendeu os pesquisadores da comunidade científica internacional. A doença, historicamente restrita à América Latina, foi registrada na Ásia pela primeira vez em 2016, resultando numa epidemia nas lavouras de Bangladesh que dizimou cerca de 15 mil hectares, com uma quebra de 51% na safra. Como os esporos do fungo podem viajar com o vento, existe o risco da brusone se espalhar para países vizinhos, como China, Índia, Nepal e Paquistão. Em 2018, a doença foi registrada na Zâmbia, no sul da África, mas sem perdas significativas. Uma importante via de disseminação do fungo é o comércio internacional, caminho para que grãos e sementes contaminadas nas áreas endêmicas possam se dispersar para outros países.
De modo geral, o desenvolvimento da doença é favorecido por altas temperaturas e umidade, condições presentes em países de clima tropical e subtropical. Na América do Norte e na Europa, ainda não foram relatados registros da doença, já que o clima mais frio pode limitar a sobrevivência do fungo e mesmo o processo de infecção na planta. No entanto, num cenário de mudanças climáticas e possíveis mutações do fungo, a ameaça global que a brusone representa não pode ser descartada.
De acordo com Singh, somente no sul da Ásia estima-se que mais de 7 milhões de hectares são vulneráveis à brusone. “Se o fungo comprometer apenas 10% de uma safra de trigo nesta região, serão 260 milhões de dólares em perdas. Uma tragédia que pode comprometer a segurança alimentar em países pobres que não dispõem de recursos para importação de trigo”, avalia.
Desafio do Controle
O pesquisador da Embrapa Trigo João Leodato Maciel explica que a doença é considerada uma ameaça global devido à condição de que a maioria das cultivares de trigo utilizadas no mundo não contam em sua genealogia com fontes de resistência à brusone. Além disso, a resistência a doenças, em especial à brusone do trigo, possui uma natureza complexa: “Apesar do trigo ser uma das culturas mais estudadas no mundo, diferentes genes estão envolvidos na resistência a doenças.
No caso da brusone, alguns asseguram resistência da planta adulta, outros somente resistência no desenvolvimento inicial da cultura e há genes que previnem lesões nas folhas ou no espigamento. É uma interação complexa, que varia em cada cultivar ou ambiente, além da mutação constante do fungo para quebrar essas resistências.”
Ainda que o avanço na eficiência do controle químico, associado ao manejo da lavoura, tenha evoluído muito nos últimos anos, a resistência genética das cultivares de trigo ainda é a forma mais segura e econômica para conter a brusone.
Diversas empresas de pesquisa com trigo no Brasil investiram em programas de melhoramento focados na resistência à brusone. Atualmente, com base nas informações fornecidas pelos obtentores para a publicação Informações Técnicas para Trigo e Triticale – Safra 2022, são 31 cultivares indicadas como moderadamente resistentes à brusone. Contudo, segundo resultados da Rede de Ensaios Cooperativos para a Resistência à Brusone da Espiga de Trigo, muitas destas cultivares têm apresentado reações de maior suscetibilidade à doença quanto testadas nos ensaios a campo, o que pode indicar a presença de variantes do fungo, com eventual quebra da resistência.